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Jornal da Lei

- Publicada em 11 de Dezembro de 2015 às 17:34

Relação entre violência sexual e doméstica é intrínseca

Para advogada Lívia de Souza, da ONG Themis, mudança de cultura passa por um Judiciário menos machista e mais arejado

Para advogada Lívia de Souza, da ONG Themis, mudança de cultura passa por um Judiciário menos machista e mais arejado


MARCELO G. RIBEIRO/JC
Isabella Sander
Muitas leis vigentes que afetam as mulheres têm sido questionadas na Câmara de Deputados. É o caso, por exemplo, da possibilidade de usar a "pílula do dia seguinte", que não permite que o óvulo da mulher seja fecundado, mesmo sem a utilização prévia de anticoncepcional, e a autorização de realizar aborto legalmente em casos de estupro ou de fetos anencefálicos. Em entrevista ao Jornal da Lei, a advogada da Organização Não Governamental (ONG) Themis, Lívia de Souza, falou sobre as questões que envolvem a violência contra as mulheres. Lívia aponta que medidas como essas são fruto de uma cultura de retrocesso e que a violência doméstica envolve, além de agressões físicas, também ataques psicológicos e sexuais.
Jornal da Lei - Dentro da questão da violência sexual, o que é mais importante de se debater?
Lívia de Souza - É importante falarmos sobre essa cultura do estupro no Brasil, como pudemos ver no caso daquela menina do Master Chef Jr. Uma menina de 12 anos receber comentário daquele tipo é horrível, mas simbólico (a criança, participante do programa, foi alvo de insinuações e ataques de cunho sexual nas redes sociais). Depois disso, a ONG Think Olga fez uma campanha com a hashtag #primeiroassédio, para as mulheres falarem de sua primeira experiência de assédio, que costuma ser muito cedo. Precisamos, também, falar sobre o quanto a violência sexual é estimulada em propagandas. É uma mudança cultural que ainda não estamos dispostos a fazer. São contraditórios os movimentos do Estado. Ao mesmo tempo em que temos a Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio, há uma cultura cada vez mais forte de objetificar a mulher.
JL - Está mais forte?
Lívia - Acho que sim. Estamos em um momento no País polarizado em extremos. É um jogo de forças, mas assusta, pois as forças do bem estão perdendo espaço. Estamos evidenciando algumas coisas. Não lembro de debater feminismo na escola, e hoje temos menininhas discutindo gênero. Porém, estamos em um momento de derrotas, com o presidente da Câmara de Deputados, Eduardo Cunha (PMDB), passando seus projetos. É cruel que um governo com expectativa de esquerda esteja admitindo essa política violenta. O Supremo Tribunal Federal (STF) vai barrar alguns desses projetos, mas é absurdo que os representantes do povo cheguem a esse nível. A população deveria ter consciência sobre o assunto e mudar isso. Há um discurso raso. As pessoas se dizem contra o aborto, mas não apoiam que uma mulher seja presa por isso. Não há lógica, pois essa mulher fará o aborto de qualquer forma, continuará na ilegalidade e pode morrer.
JL - De que modo o Direito pode contribuir com essa mudança de cultura?
Lívia - Com um trabalho dentro das instituições. O Judiciário é machista, duro, conservador. Arejar isso é importante. Controlar a mídia é outro caminho a ser seguido. A Themis recentemente ganhou uma causa que impede os veículos de lucrarem com o funk "Um tapinha não dói". O processo corria há dez anos, foi uma decisão histórica. Contudo, os comentários das notícias sobre isso na internet falam de falta de liberdade de expressão. Que liberdade é essa, com disseminação de ódio? Lutamos por muito tempo no Brasil para ter liberdade, mas não podemos ter um debate raso sobre discurso de ódio. É violento demais que a propaganda da Boticário com casais homossexuais seja mais polêmica do que as de cerveja, que vendem a mulher como um pedaço de carne. Que valores são esses? Mais do que na punição, o Judiciário deve pensar nesse discurso. Quando há um julgamento sobre estupro, por exemplo, não se pode avaliar que roupa a vítima estava usando, como estava se comportando.
JL - Esse tipo de julgamento é encontrado nas sentenças?
Lívia - Sim. Fiz minha dissertação de mestrado sobre crimes sexuais, e era chocante ler nas sentenças dos processos sobre a vítima estar bêbada, ou que eram 2h da manhã, que ela estava sozinha. Há um livro publicado por um juiz, inclusive, no qual ele fala que uma menina de 12 anos violentada pelo pai tinha uma parcela de culpa, pois o deixava dar banho nela. Há uma cultura de violência contra a mulher que precisamos combater, não só punindo, mas pensando nesses discursos que vão se naturalizando.
JL - Atualmente, quais leis existem para garantir os direitos das mulheres?
Lívia - As principais são a Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio. Essa última é importante para termos dados consistentes da violência, pois, por muito tempo, se perpetuou a ideia de crime passional. Devemos romper com isso, porque é uma questão de gênero que mata muitas mulheres. Ainda assim, a aplicação das leis não é perfeita. Me preocupa que muitas mulheres transexuais morrem por causa de gênero, mas não são enquadradas no crime de feminicídio, e esses crimes muitas vezes não são nem apurados. A Lei Maria da Penha tem um texto legal muito bom, mas a aplicação dela é focada no Direito Penal, o que é falho, pois há necessidade de prevenção, centros de referência, lugares de escuta das mulheres, e isso tem deixado a desejar.
JL - Dos 31 mil presos hoje no Rio Grande do Sul, só 28 deles foram detidos pela Lei Maria da Penha. Por que tão pouca gente é presa pelo crime de violência doméstica?
Lívia - É difícil prender pela Lei Maria da Penha, porque o juiz exige provas, e nem sempre se tem. É difícil ter prova em crimes que acontecem dentro do lar, a não ser as marcas que ficam na mulher. Isso deveria mudar, pois o foco das medidas protetivas é para violência física, mas há as violências psicológica e sexual. As pessoas, às vezes, não percebem isso como violência. Os números do Tribunal de Justiça do Estado (TJ-RS) falam que 8% dos processos criminais são de violência doméstica. Se pensarmos que os processos criminais envolvem furto, roubo, tráfico e várias outras coisas, é muita coisa, e o Estado é ineficiente nisso. Prisão não é solução para tudo, mas é uma medida importante a se buscar, pois há mulheres que precisam mudar de cidade ou estado por isso.
JL - De que forma a violência sexual ocorre na violência doméstica?
Lívia - A violência sexual é invisibilizada na violência doméstica, mas a relação é intrínseca em grande parte dos casos, e nunca vira processo de estupro. Cansei de ler relatos de mulheres dizendo: "ele me obrigava a fazer aquelas coisas", mas isso não é registrado como estupro, então ele só será condenado por lesão corporal, que tem uma pena muito menor. Se ignora completamente que a mulher foi humilhada, obrigada a manter relações sexuais com o agressor. São várias formas de violência sexual, umas mais graves do que outras, mas é esse temor que as mulheres têm pelo corpo. A violência também acontece quando um homem força uma menina mais jovem a transar sem camisinha como prova de amor, pois é violência a mulher pensar no seu corpo como um objeto de barganha.
JL - O assédio sexual deve ser penalizado?
Lívia - Ainda discutimos sobre isso. Poucos países penalizam, e não sei se seria efetivo, pois já há muita gente encarcerada. Precisamos trabalhar para que ninguém ache natural que o amigo grite do carro para uma mulher. As piadinhas, o conceito de que, se transou de primeira, é vagabunda. As mulheres têm o tempo inteiro sua sexualidade dissecada. Se a mulher é lésbica e feminina, ela é fetiche. Se é lésbica e não é feminina, é sapatão. É uma construção perversa que as mulheres sofrem com isso. O Direito não consegue e nem deve dar resposta para tudo, mas devemos pensar que sociedade é essa em que vivemos e tentar educar.
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