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Jornal da Lei

- Publicada em 05 de Novembro de 2015 às 16:20

A violência como crime de Estado

Felipe Lazzari da Silveira defende reforma institucional da segurança pública

Felipe Lazzari da Silveira defende reforma institucional da segurança pública


FREDY VIEIRA/JC
Daniel Sanes
Vinte anos após o fim do regime militar, a tortura ainda é uma prática recorrente no Brasil. De acordo com o relatório anual da ONG Human Rights Watch, seis brasileiros são vítimas desse tipo de crime diariamente, sendo grande parte deles (84%) detentos ou menores em unidades de internação - em sua maioria, jovens, pobres e negros. De janeiro de 2012 a junho de 2014, foram relatados 5.431 casos de tortura no País. Os dados são baseados em denúncias recebidas pela Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos.
Vinte anos após o fim do regime militar, a tortura ainda é uma prática recorrente no Brasil. De acordo com o relatório anual da ONG Human Rights Watch, seis brasileiros são vítimas desse tipo de crime diariamente, sendo grande parte deles (84%) detentos ou menores em unidades de internação - em sua maioria, jovens, pobres e negros. De janeiro de 2012 a junho de 2014, foram relatados 5.431 casos de tortura no País. Os dados são baseados em denúncias recebidas pela Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos.
Com o objetivo de mostrar que a violência policial está diretamente arraigada aos tempos de ditadura, o advogado criminalista Felipe Lazzari da Silveira decidiu abordar o tema em sua dissertação de mestrado em Ciências Criminais pela Pucrs, que acabou se transformando no livro "A Tortura Continua! O Regime Militar e a Institucionalização da Violência e do Autoritarismo nas Instituições de Segurança Pública" (editora Lumen Juris, 242 páginas). O autor, que também é pós-graduado em Direitos Fundamentais e Garantias Constitucionais em Direito Penal e Processual Penal pela UCLM Universidad de Castilla - La Mancha (Espanha), concedeu entrevista ao Jornal da Lei, na qual critica a institucionalização da tortura e defende uma reforma institucional da segurança.
Jornal da Lei - Como se deu a escolha do tema da pesquisa e de que forma decidiu transformá-la em livro?
Lazzari - Ao ingressar no mestrado da Pucrs, conheci o professor José Carlos Moreira da Silva Filho, meu orientador. Ele é membro da Comissão Nacional da Verdade, então lida diretamente com esse assunto. Acabamos chegando a temas que eu, como advogado criminalista, já tinha interesse em estudar, como a violência policial. Não há como explicar a violência policial no Brasil baseado apenas na criminologia internacional, já que é um fenômeno que tem a ver com o nosso histórico de violência, de uma ditadura. Dentro desse enfoque, a dissertação visou abordar a tortura atualmente, mas já fazendo o contexto com o regime autoritário e até com períodos anteriores. Na obra, falamos sobre os métodos de tortura e como ela ocorria em outras épocas, desde o período colonial, passando pela era Vargas e, claro, dando destaque para o período da ditadura. O objetivo é explicar esse vínculo da violência policial de hoje com a produzida pelo regime militar, que teve o papel de institucionalizar a tortura. A ditadura acabou sistematizando o que antes era disperso, transformou a violência estatal em uma prática comum, que acabou sendo incorporada no DNA das instituições. Apesar de haver dificuldade com dados, pelo fato de a cifra negra (crimes que não são registrados ou que não chegam ao conhecimento do Estado) ser muito grande, sabe-se que hoje em dia no Brasil se tortura muito mais do que no regime militar.
JL - A cifra negra é o maior obstáculo na investigação desse tipo de crime?
Lazzari - Qualquer espécie de delito tem essa cifra, mas no caso dos crimes de tortura, ela é muito maior. Isso porque é um crime de Estado; ou seja, além de haver protecionismo institucional, é praticado contra supostos criminosos, pessoas estereotipadas como inimigas da sociedade e que não têm voz.
JL - O Brasil conta com a Lei nº 9.455/97, a chamada Lei de Tortura, que no livro é apontada como "ineficaz". O que leva à ineficácia dessa lei?
Lazzari - A ONU define tortura como um crime diferenciado, praticado por agentes do Estado ou pessoas vinculadas a ele. A lei brasileira acabou qualificando a tortura como um crime comum, que pode ser praticado por qualquer pessoa. Há um excelente levantamento, da pesquisadora Maria Gorete Marques de Jesus (do Núcleo de Estudos da Violência da USP), em que ela demonstra que, por causa da definição da lei, crimes cometidos por policiais acabam sendo desqualificados. A pessoa agredida, quando é violentada pelo Estado, não tem nem para quem reclamar, porque quem deveria protegê-la está agredindo.
JL - Por que a Justiça de transição no Brasil foi considerada falha?
Lazzari - A Justiça de transição trabalha com alguns pilares, como memória, verdade, justiça e reparação das vítimas, com a intenção de neutralizar o legado autoritário de violência no processo de redemocratização de um país. No caso do Brasil, ela foi aplicada em nível insuficiente. Com exceção do que foi feito pela Comissão Nacional da Verdade e pela Comissão de Anistia, pouco se fez. O regime militar disseminou a paranoia do medo dos subversivos, dos comunistas, e conseguiu colocar no imaginário da população de que a ditadura foi um mal necessário, e não um crime. Pelo fato de o País não ter políticas transicionais suficientes, os crimes cometidos pela ditadura não foram apurados. Ou seja, o legado autoritário daquele período seguiu arraigado nas instituições. No caso da tortura, policiais que apoiavam essa prática, em vez de serem responsabilizados, seguiram ocupando cargos públicos. Isso tudo, associado a uma Justiça de transição insuficiente, fez com que esse "entulho" autoritário permanecesse no nosso seio social. Hoje em dia é comum ver pessoas pedindo a volta dos militares, entendendo que a época da ditadura foi boa, que foi uma revolução.
JL - A tortura se tornou uma prática "normal" e até aceitável para parte da sociedade?
Lazzari - Quando falamos da institucionalização da tortura, é preciso lembrar que a ditadura criou órgãos policiais mistos, como o Doi-Codi (Destacamento de Operações Internas - Centro de Operações de Defesa Interna), formado por policiais federais, militares, civis. A Polícia Civil tinha uma experiência de tortura muito forte, mas não era algo institucionalizado ainda. Pegava o pessoal nas favelas, levava para a delegacia e torturava. Quando as polícias se uniram para combater os supostos inimigos subversivos, os militares viram que a tortura "funcionava", já que algumas das pessoas que eram presas acabavam delatando seus colegas - o que é até justificável, devido ao sofrimento absurdo.
JL - A formação policial influi para disseminar a prática da tortura?
Lazzari - Me parece que hoje em dia a formação é mais adequada. O grande problema, no caso da Polícia Militar, por exemplo, não é da instituição como um todo. Os oficiais até abordam o tema dos direitos humanos na academia, mas esse discurso acaba sendo esquecido no treinamento. Quando chega a parte mais prática do curso, prevalece a cultura da rua, do trabalho diário, da violência. Sabemos que a polícia trabalha sob uma pressão muito forte, é mal paga, não tem equipamento necessário, o contingente é insuficiente. E ainda há o legado autoritário e a pressão por resultados. Tudo isso contribui para esse cenário de violência.
JL - A mudança passa por uma reforma institucional?
Lazzari - Com certeza. A Polícia Militar é uma instituição incompatível com o regime democrático, principalmente pelo fato de o treinamento não ser destinado à proteção do cidadão, mas de combate à criminalidade, de um inimigo. É praticamente uma instituição voltada para a guerra.
JL - No dia a dia como advogado criminalista, ouve muitos relatos de casos de tortura?
Lazzari - Sim, e há um dado curioso. Muitas pessoas sofrem torturas e nem sabem que foram torturadas. Às vezes, estou conversando com um apenado, e, quando pergunto se foi vítima de tortura, ele me diz: "tortura, não, mas colocaram uma sacola na minha cabeça. Ou "apertaram meus dedos", "me sufocaram". A pessoa narra uma série de agressões, mas não vê como tortura porque, no imaginário popular, é preciso ser levado para uma sala fechada, ser colocado num pau de arara. Isso é muito triste, porque mostra que temos uma tolerância muito grande com a violência.
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